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Fuga

por Guilherme Fischer
Desenho de Ariyoshi Kondo ilustra o conto de Guilherme Fischer.

Guilherme Fischer é professor e escritor.


O sol acabava de nascer no primeiro dia daquele outono de 1973.

Sobre o lago do sítio Alvarenga, a brisa produzia leves ondulações, distorcendo a imagem das olheiras negras de Luzia. Foi longa a noite. Chorou por muito tempo, abafou o barulho com o travesseiro e, quando pensou não haver mais água que pudesse chorar, aquietou. Mas não dormiu. Mesmo cansada, os pensamentos a mantiveram acordada, razão pela qual, deitada, olhando para o teto, com a mão sobre a barriga, viu a madrugada passar vagarosamente em meio ao barulho do vento nas folhas e ao cricrilar dos insetos.

Após tomar leite com café e comer pão com manteiga, cardápio de todas as manhãs, refugiou-se das perguntas e dos olhares curiosos às margens do lago. Por sorte, naquele sábado, não trabalharia: durante a semana, ela e os irmãos adiantaram o serviço para que os pais, como eles próprios diziam, fossem resolver coisas na cidade. Que coisas eram essas, ela não sabia. O importante era que livrava o seu dia de trabalho, e isso já bastava. Procurou um local seguro e limpo, puxando a barra do vestido de malha, costurado pela mãe, como toda roupa da casa, e agachou-se à margem. Instintivamente, segurando uma pedrinha, jogou-a no lago, que quicou na água, elevando-se três vezes, até que, na quarta, afundou. Lembrou-se do verão de 1962, quando, com sete anos de idade, fez seu primeiro arremesso.

Afonso, o seu irmão mais velho, com doze anos na época, foi quem a ensinou a lançar pedrinhas. Assistiu aos arremessos intercalados de explicações e, encantada, riu como poucas vezes. Não chegou a gargalhar, mas mostrou os dentes e um brilho nos olhos, o que era incomum entre os moradores da casa e que Luzia perderia cedo, apareceu.

— Vamos, pegue uma, segure com a direita e jogue: não como quem quer acertar o rio, mas como quem quer que a pedra escorregue por ele.

A mão infantil lançou descoordenadamente a pedra em direção da água, o lago engoliu-a. Tentou novamente sem êxito. Repetiu o feito e o lago também repetiu.

— Fonso, não consigo… Quando eu conseguir te chamo pra ver.

— Você consegue, pequena. Me avise que largarei tudo pra assistir. Naquela semana acordou mais cedo todos os dias com o objetivo de treinar oarremesso. Antes de dormir, detalhava a sua melhora para o irmão, que, cansado, ouvia-a com atenção. Quando dormia em meio aos relatos, logo pela manhã já pedia para que a menina os retomasse, sem esquecer o exato momento em que o sono interrompera a história. Era um dos poucos que escutava atentamente quando Luzia falava. Isso fez com que, cada vez mais, ela se apegasse a ele. Via-o como o pai ausente, enquanto ele nutria um amor paterno pela irmã.

No mesmo quarto, dormiam os três irmãos, entre a cama de Luzia e a cama de seu irmão mais velho, havia a de Carlos, que, na época, contabilizava cinco anos. O interior da casa de madeira organizava-se em quatro divisões: o quarto dos pais, Matilde e Antônio, ficava ao lado do quarto das crianças, nos dois cômodos as portas permitiam acesso à sala e cozinha conjugadas. A porta da cozinha levava à lateral da residência, onde localizava o pequeno espaço em que a mãe costurava, o alpendre largo protegia os cômodos dos dias de calor, estendendo-se até a frente da casa. A vinte metros de distância da oficina de costura, podia-se ver o banheiro rústico apelidado de “casinha”.

A construção simples e os cômodos apertados, pelos sonhos dos pais, poderiam ser divididos com mais integrantes, como “onde comem dois comem três”. Queriam muitos filhos, só não corriam mais crianças pela casa devido aos sucessivos abortos espontâneos que a mãe tivera. Antônio culpava a esposa pelos ocorridos, comparava a outras mulheres da região que tiveram vários filhos. Ressaltava, sempre que podia, a desgraça que caíra sobre eles: em dez anos de casado, tinham apenas dois garotos, que nunca dariam conta do volume de trabalho que a roça exigia. Já Luzia, apenas levava marmita e água enquanto labutavam, ajudava também na costura e, principalmente, nos afazeres da casa. Mais uma costureira na zona rural! O que mais tinha era costureira, seria o mesmo que duas pessoas para fazer roupas para família e remendos; duas pessoas para fazer comida na mesma casa. Não poderia sequer cuidar de um irmão mais novo: Matilde não prosseguia com a gravidez.

O sítio estava localizado na cidade de Câmira. A zona rural ocupava a maior parte da cidade. Apenas na região central havia chegado a eletricidade, sendo que os poucos comércios, que ostentavam lâmpadas incandescentes, cercavam a única Igreja Católica. As famílias produziam somente para a subsistência, motivo pelo qual a zona urbana desenvolvia-se lentamente. Aquelas terras possuíam a mesma solidão do sítio Alvarenga, com muito trabalho, poucos familiares e poucos amigos. Padre Getúlio, homem astuto, de pouca conversa e rigoroso em relação à fé, fazia uma visita mensal à família Alvarenga, às terças-feiras (dia que possuía menos afazeres). Quando não levava roupas para reparar, pedia para que confeccionassem novas peças, desde litúrgicas a roupas pessoais. Negociava com frequência ovos e frangos da propriedade Alvarenga. Sempre reservado, até mesmo em relação aos pedidos de costura, dirigia-se apenas a Antônio enquanto andavam pelo sítio, toda conversa considerava séria e urgente. Assim que fosse embora, o marido repassava o pedido feito pelo pároco à esposa. A casa amiga mais próxima era a de tia Rute, irmã de Matilde, que raras vezes visitava-os. A cidade mais bem desenvolvida (mesmo que precária ainda era considerada referência) chamava-se Sobradina e situava-se a quilômetros de distância.

No mesmo lago, atrás da casa, quando completava seus dez anos, Luzia chorava após uma surra dada pelo pai: os pontos da roupa abriram. Olhando na direção de Sobradina, naquele dia, Afonso lhe prometeu que morariam lá, seriam felizes longe do castigo paterno e do silêncio materno, que, mesmo sem bater, consentia, sem pena, as correções extremamente rígidas. Além de que, caso as tarefas não fossem realizadas em tempo hábil ou da forma ordenada, não poupava gritos chamando o marido para aplicá-las.

Nas margens do mesmo lago, quando completou dezessete anos, conheceu um amigo de Afonso. Os dois pescavam depois de uma semana exaustiva.

— Licença, a mãe pediu pra que trouxesse pão pra vocês.

— Obrigado, moça, prazer, Damião. Sabe pescar?

— A única coisa que sei num lago é jogar pedras.

— Pra que jogar pedras na água?

— Matar o tempo, tudo que se faz na vida é pra matar o tempo… Até que ele nos mate.

Foi com essa estranha conversa que o rapaz se apaixonou por ela, não quis que o tempo o matasse antes de pedir a sua mão. Sem perder tempo, começaram a namorar naquele ano. Afonso conversou muito com a irmã; tentou mostrar para o pai o quão bom era o amigo, mas de nada adiantou. Aceitou quando disse para o moço na sala “se não andar na linha te mato, Damião! Te busco nos quintos dos infernos, mas mato!” e dessa forma ele entrou para família.

Luzia estava com dezoito anos naquele primeiro dia de outono de 1973. O lago era um espelho de lembranças, despedia-se do sítio com olhar saudoso. Quanto tempo ficaria sem ver Afonso? Sentia pena até por Carlos, que pouco participou de sua vida. Estava decidida que segunda de madrugada fugiria com Damião para Sobradina. Em pouco tempo, não haveria como esconder a gravidez do pai. Ele não a perdoaria e seria rude na punição. Ajoelhada na margem jogou uma pedrinha, quicou três vezes e o lago engoliu. Curvou-se e beijou as águas em sinal de despedida, lavou o rosto aos prantos, agradeceu a oportunidade da maternidade e a sorte de ter o namorado ao seu lado. Fixou os olhos alguns minutos em direção a Sobradina.


O cheiro de café impregnou a casa às cinco e meia da manhã do domingo. Em torno da mesa havia cinco rostos sonolentos. Os olhos se evitavam. Havia uma afiada tensão que cortava o recinto feito os dentes que rasgavam o pão com manteiga. A ausência de som não era absoluta, porque ouvia-se, vez ou outra, o tilintar das canecas e o barulho da boca sugando o café.

Antônio leva a caneca à boca, o vapor contorna a sua face, põe a caneca vazia sobre a mesa, fixa o olhar em direção da filha e questiona com voz firme:

— Te falta pão?! — Sem olhar para o pai acenou com a cabeça negativamente. – Te falta teto?! — Repetia o mesmo gesto de negativa. — Se não te falta nada e fica nos cantos chorando, o que tem é preguiça! Faz isso pra que sua mãe alivie o serviço. — Levantou mais ainda o tom de voz — Olha o que você ensina, Matilde! Olha o que você ensina!

O silêncio tomou conta da cozinha, se bem que seria melhor que nem se tivesse apartado do local. Luzia segurou o choro, Carlos e a mãe permaneceram indiferentes, Afonso perdeu a fome. Assim que o último terminou a refeição, foi permitido que fossem trocar a roupa: estava no quarto passada, alvejada e impecável, como exposta na vitrine.

O sol foi brando nos seis quilômetros de caminhada rumo à paróquia. Chegaram com antecedência, rezaram como de costume. Naquele dia, o padre atenderia confissões, motivo pelo qual voltaram mais tarde que nos outros domingos.

A menina foi à última a adentrar a sacristia:

— Padre, pequei.

— Quais são os seus pecados?

— Confessarei o meu pecado de amanhã.

— Oxi! Adiantado?! Mas se se arrepende porque fará?

— Meu pecado é necessário. — Desviou o olhar timidamente, expunha pela primeira vez a alguém. Não conseguia dizer uma palavra.

— Conte logo, menina.

— Eu… É… Estou grávida… E fugirei com Damião.

— Não me diga que é o Damião filho de Miranda?! – Fixou os olhos na moça e franziu a testa (não a desfranziu até a fim da confissão).

— É esse mesmo — respondeu com voz baixa.

— Conheço a família há pelo menos quinze anos. Isso é muito grave, menina, isso é muito grave… — Passou a mão no queixo — Que horário fugirão?

— Combinamos meia-noite.

— Ah, meia-noite! Impossível. O encontrará como, no meio de campo tão vasto e escuridão sem tamanho?

Luzia olhou firme para o padre e aumentou o tom de voz:

 — Marcamos de se encontrar na Jabuticabeira em frente à casa. Chegarei a ela sem erro. Mas, padre, precisa mesmo, na confissão, de tantos detalhes sobre a fuga?!            

Getúlio detestava ser contrariado, então se conteve:

— Está ferindo a Lei de Deus e a lei dos homens, não destas leis escritas pela cidade, mas destas que o homem cria onde mora. Na região menina grávida fugindo…

— A Lei de Deus perdoa, seu padre?

— A Lei de Deus perdoa todo arrependido; a lei dos homens vinga.

Desde o momento que ela confessou a fuga, padre Getúlio não conseguia prestar atenção em nada, por nenhum momento, naquele dia. Fechou a igreja ainda de testa franzida. Almoçou sem se atentar ao gosto da comida. Entre uma garfada ou outra, resmungava “Combinamos à meia-noite”. Com o garfo suspenso, olhava fixo ao horizonte, repetia “Damião! Damião!” e respirava fundo. Jogou metade do que estava no prato para os cachorros, montou em seu cavalo e partiu rumo ao sítio Alvarenga.

A surpresa fez com que não soubessem como recebê-lo. Matilde preparava café, padre Getúlio observava atento a tudo: sisudo, acompanhava com os olhos cada um dos integrantes da casa. Quando avistou a garota entrar, disse:

— Antônio, não demorarei, o que me trouxe aqui é a necessidade de conversar algo sério, que de hoje não pode passar.

— Que assunto é esse que de tão importante te trouxe fora de hora?

— Já digo. Matilde, vamos caminhar e, assim que voltarmos, tomarei café.

— Te espero, padre.

Seguiram alpendre afora sem destino, em silêncio. Iniciaram a conversa somente depois de uma distância segura. Sequer passou pela cabeça de Luzia que o seu segredo pudesse ser revelado. Mesmo confessando todos os detalhes, não desconfiava que o pior pudesse acontecer. Ao contrário, em sua inocência, sentiu-se feliz: havia chegado o momento de falar com Afonso. Chamou-o apressada, o irmão atendeu, e os dois correram até a margem do lago. Segurando uma pedrinha, jogou-a em direção a água. Quicou três vezes, o lago engoliu:

—Se lembra quando me ensinou a lançar pedrinhas?! Nunca me esquecerei de você, meu irmão, jamais me esquecerei deste lago. Já Carlos, não sei se sentirá minha falta. Papai e mamãe terão desgosto tamanho que nunca me aceitarão… Ah! Afonso só tenho você… e hoje me despeço. — Ouviu-se chorando e, mesmo sem entender, sabia que as palavras falavam de saudade. — Será titio! Será titio! Falarei muito de você a ele, Damião fará o mesmo.

— Damião não me disse nada… — comentou, olhando desconcentrado – Mais alguém sabe?

— Contei apenas a você e, na confissão, ao padre. — Luzia! — disse arregalando os olhos já sem lágrimas — O padre está conversando com o pai…. Nem quero ver caso ele conte.

— O Padre não conta.

— Saberemos só amanhã… Até que não fuja continuarei preocupado.

Depois que soube dos detalhes, abraçou-a. Beijou-lhe as mãos. Segurou uma pedrinha e lançou-a na água descoordenadamente, imitando a caçula em sua primeira tentativa. Sorriram discretos da releitura, que mais relembrava com carinho do que zombava, e retornaram para a casa envoltos ao mesmo silêncio que estiveram entorno da mesa.

Tomando café, ouviram as conversas.

Afonso não tirava os olhos de Getúlio. Luzia agiu normalmente e, assim que ele partiu, o seu semblante ficou pensativo.

O sol mal se punha, já se preparavam para dormir, quando a garota sussurrou no ouvido de Afonso: “Nos veremos em Sobradina”. Luzia passaria em claro, olhando para o teto e sonhando com a liberdade. Acariciava o ventre e sentia-se feliz pela primeira vez, não se sabe se em anos ou se na vida. Afonso fechava os olhos, mas não dormia. Desde que soubera da fuga, demonstrava-se agitado, preocupado, as horas pareciam dias. Matilde e Carlos em sono profundo. No quarto ao lado, sentado na cama, com olhos fixos e firmes, Antônio carregava o tambor do trinta e oito. Próximo às dez horas da noite, deitou-se pondo-o ao lado do travesseiro e retirou as balas do bolso para não acordar a casa quando caminhasse. O padre dormia sem culpa.


Range a porta de madeira da cozinha.

Afonso acorda do cochilo assustado no quarto escuro, senta-se na cama e acende uma binga para clarear o relógio de bolso sobre a palma da mão: marca vinte e três horas e trinta minutos. Escuta uma outra porta se abrir, mas essa parecia ser do cômodo ao lado. Em questão de segundos, ouve o som de passos lentos no assoalho, que lembrava goteiras pingando na frente de seu quarto, distancia-se para a cozinha. Pisada ou outra, o madeiramento estala menos discreto. Tateia embaixo da cama, segura a lamparina e põe fogo no pavio, guarda a binga no bolso, ilumina a cama ao seu lado, Carlos dorme. Caminha, ergue o foco de luz, avista a roupa que Luzia foi à missa no cabide, pendurada no puxador do guarda-roupa. O lençol de sua cama revirado. Havia fugido ou ao menos iniciado a fuga. Sai do recinto lentamente. Mal o corpo passa pelo batente, nota a porta do quarto dos pais aberta. Isso nunca ocorrera. Encostavam desde o momento que entravam e, antes que alguém acordasse, ninguém abria. Alargou os passos sentido à saída. Mesmo com movimentos lentos e leves, o assoalho e a porta da cozinha rangem juntos. Encostou-a e apoiou a lamparina no chão após a apagar.

Fora da casa, procura com os olhos a “casinha” a sua direita, mas, pela ausência de luz em seu interior, ninguém a utilizava. Confere atrás da casa: o céu estava estrelado, apenas uma nuvenzinha se arrastava próxima à lua cheia, que ondulava a luminosidade espelhada no lago. Apalpando a casa, caminha à esquerda e agacha-se. Não demorou até que enxergasse uma lamparina acesa, deslocando-se em direção ao ponto de encontro. O vulto que conduzia a chama ora parecia ser Antônio, ora parecia ser Luzia. Na frente da casa, a grama aparada cobria o solo até a porteira da propriedade e, a alguns passos da lateral da residência, pés de café viçosos se avolumavam e tornavam a plantação cada vez mais densa até poucos metros da jabuticabeira. Uma fileira de crisântemos, que organizava o terreno, diminuía o contraste da cor da terra em meio ao cafezal com o gramado, mas a noite era tudo envolto pelo mesmo breu. Madeiras tortas fincadas no chão demarcavam a propriedade, alinhadas aproximadamente a um metro de distância uma das outras. Após a cerca, o colonião se tornava cada vez mais espesso até se misturar à mata fechada.

Um vulto se movimenta próximo à casa, entra no cafezal e acende a lamparina rente às folhas, tampando a pouca luminosidade com a mão esquerda. Sem dúvidas é Antônio. Quem mais seria?! Do alpendre, vê o fogo sumir entre as folhas rumo à jabuticabeira; do outro lado, um sinal de luz no descampado, indo em direção à mesma árvore, como uma procissão de uma pessoa só. Quem mais seria se não Luzia?! Ela havia escolhido o trajeto mais longo e seguro: cruzar o gramado na diagonal, uma forma de livrar-se do cafezal; mesmo sendo um atalho em linha reta, suas paredes irregulares de plantas sombreariam a pouca claridade da noite. Encontro de pai e filha inevitável.

Frente à anunciação de uma tragédia, não poderia se atrasar, então agiu instintivamente: apanha um canivete, que estava na janela por precaução, e coloca bruscamente no bolso da calça de flanela. Cuidadoso e decidido, embrenha-se entre as folhas na tentativa de seguir o trajeto feito por Antônio. Ah! Como a iluminação é horrível, tudo turvo a sua frente. Depois de alguns metros de caminhada, vê uma luz que deduz ser a da irmã. O brilho das várias estrelas e a luminosidade da lua, que por sinal estava imensa, como nos contos de lobisomem, ajudavam-lhe. O canto do urutau o arrepiava. Acendeu também a lamparina que trouxe consigo, tapando com a mão esquerda parte da luminosidade. Se ao menos a plantação não fosse irregular e os corredores, mais bem distribuídos, correria menos riscos de topar com alguém. Se bem que topar às claras seria pior para Afonso, ainda mais agora com os passos de Antônio cada vez mais próximos… Ou poderiam ser da irmã… Ou do cunhado…

Tiro seco, barulho ensurdecedor à sua esquerda.

Parou.

Em seguida, o som de algo caindo, parecido com um saco de milho sendo jogado numa carroceria.

Estava mais perto de todos do que imaginava.

Por entre as folhas, assiste à corrida da irmã para junto do amado. Naquela região, nunca se ouviram gritos como os da menina, que, desesperada, senta-se na grama e abraça o corpo desfalecido. O sangue escorria, formando uma poça. Pressionando-o contra a barriga, reclina a cabeça da vítima em seu colo, seria o último momento que Damião haveria de ver as olheiras negras de Luzia.

Por entre as folhas, a poucos passos de onde estava, também espreitou Antônio agachado, pondo o revólver na cintura e apagando a chama. As imagens turvas. O cheiro de crisântemo impregnava a noite. Afonso, discreto, cessa o fogo da lamparina, pisa o mais leve que pode, por trás, aproxima-se lentamente do pai, desliza a mão vagarosamente pelo bolso, a ponto de sentir o atrito da pele com a flanela, segura o canivete. Toca-lhe os ombros. Antônio sequer direciona a cabeça em sua direção ou movimenta o corpo. Vidrados, os olhos dos dois, no ferimento iluminado pela luz de Luzia, que não retirava a atenção do ofegante Damião, de sua respiração cada vez mais cansada, asfixiante, agonizante.

Antônio permaneceu com o semblante sério. Afonso desfranziu a fronte, relaxou a face e sorriu.


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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